Vida, Proezas e Propósitos

Neste artigo*, Dante Gallian parte do romance Vida e Proezas de Aléxis Zorbás – que será discutido na próxima turma do nosso programa Ética & Literaturapara refletir sobre do sentido do trabalho e da performance. Afinal, trabalhamos para quê?

Em Vida e Proezas de Aléxis Zorbás, de Nikos Kazantzákis, o narrador da história é um intelectual em crise que busca um norte em meio a um naufrágio existencial. Havendo recebido em herança uma mina abandonada em uma erma localidade de Creta, resolve, sem nenhum tipo de experiência ou conhecimento técnico ou administrativo, explorá-la comercialmente. Enquanto aguarda a partida do barco num desmilinguido bar do Pireu – porto de Atenas – que o levaria para ilha minoica, é abordado por um tipo curioso: velho, seco de carnes, expansivo e um tanto debochado.

Aléxis Zorbás, havendo colhido informações sobre aquele triste e melancólico pretendente a empresário, oferece-se, sem cerimônia, para ser seu capataz, mestre de obras e cozinheiro. Munido apenas de uma leve trouxa, um santir (espécie de cítara turca) e muita disposição, Zorbás, com uma lábia envolvente e um jeito pícaro sedutor, conquista imediatamente o jovem tímido e sonhador. Poucas horas depois, desembarcam numa aldeia ínfima, localizada na parte mais subdesenvolvida de Creta, perto de onde se encontrava a mina. Hospedados numa “pousada” de lata, de propriedade de uma velha e decadente prostituta francesa, que havia sido esquecida naquelas paragens, iniciam uma bela e intensa relação de amizade, que iria transformar a vida deste narrador para sempre.

Durante o dia, Zorbás, que arregimentou os operários e cuidou de todos os detalhes técnicos, trabalha arduamente para iniciar a produção, que ele promete ser “muito lucrativa”, enquanto o patrão-escritor se dedica à redação de um manuscrito sobre Buda e a obtenção do nirvana. À noite, Zorbás, depois de se lavar da fuligem e do suor obtidos no árduo trabalho minerador, acende o fogo, prepara a sopa, serve o vinho, o pão, e se põe a contar longas e mirabolantes histórias de sua juventude, de suas aventuras e proezas que mais parecem as narrativas de Simbá, o marujo, que deliciam o fleumático patrão.

Passadas algumas semanas, sentindo haver ganhado a confiança do patrão e estando os laços de amizade já consolidados, Zorbás atreve-se a fazer a pergunta que desde o primeiro instante queria fazer, mas que até então não tinha sentido segurança suficiente para lançar: “Patrão, estamos aqui só mesmo por causa do carvão?” Estamos aqui só mesmo para produzir, para performar? A resposta do patrão faz Zorbás saltar de alegria, a explodir numa euforia que o leva a dançar como um louco: “O carvão é um pretexto para que as pessoas não se escandalizem, para que pensem que somos empresários sérios e não nos atirem ovos podres. Entendeu, Zorbás?”

Zorbás entende e entende muito bem, pois para ele é exatamente este o propósito de qualquer empreendimento, de qualquer trabalho: não o da produção, o da performance, mas sim o de “passar o tempo”, contando boas histórias e dando boas risadas. Extrair carvão? Sim, claro! Trabalhar arduamente, desde o nascer ao pôr do sol? Sim, com certeza e com toda concentração e seriedade! Ganhar dinheiro? Como não? Mas ganhá-lo com o fim de “queimá-lo” o quanto antes, em viagens, em aventuras, em busca de ilhas desconhecidas que revelarão o que seremos quando lá estivermos. Zorbás, escreve Nikos Kazantzákis, “esperava com impaciência o momento de ganhar muito dinheiro, adquirir muitas asas – assim ele chamava o dinheiro: asas – e voar.”

Não que Zorbás não gostasse do trabalho, muito pelo contrário: “Ele se entregava por inteiro ao trabalho, não tinha nada mais no pensamento, tornava-se um com a terra, com a picareta, com o carvão. Era como se o martelo e os pregos tivessem virado parte do seu corpo, e ele lutava com a madeira, lutava com o teto da galeria, que se abaulara, lutava com toda a montanha, queria tomar-lhe o carvão e partir. Zorbás sentia a matéria e com segurança a golpeava, infalivelmente, no lugar em que estava mais fraca e podia ser vencida. E do modo que eu o via naquele momento, todo sujo de carvão, só com a alva dos olhos a brilhar, parecia-me que se camuflara com carvão, que se convertera em carvão para poder aproximar-se mais facilmente do adversário e invadir a fortaleza dele.”

Da mesma forma, Zorbás assim vivia o repouso, o descanso. E quando, ao final do dia, voltava para o casebre de lata, acendia o fogo, cortava os legumes e cozinhava a sopa, Zorbás virava fogo, legumes, sopa. Quando comia o pão recém-assado e o vinho, não pensava em outra coisa: ele mesmo se tornava pão e vinho. E assim também quando acendia o seu cachimbo depois da refeição, abria o coração para ouvir e soltava a língua para falar, para contar histórias ou, quando narrar não era suficiente, saltava e começava a dançar. Nesses momentos, não havia mais mina, nem carvão, nem trabalho, mas comida, bebida, lembranças, histórias, música, dança. Eis o modo zorbástico de trabalhar, de descansar, de comer, de beber, de dançar, de viver. E tudo isso durante um tempo. Tempo suficiente para criar asas e… voar… voar para uma nova ilha, para uma nova aventura, para conhecer outras paragens, outras pessoas e, claro, conhecer-se melhor.

Resolvi aqui, querido(a) leitor(a), recontar essa evocativa história porque tenho sido sistematicamente interpelado sobre o tema do propósito no âmbito do trabalho, da vida corporativa, no contexto da hipermodernidade. Em tempos de alta performance, produtividade e busca da felicidade no trabalho, parar, deixar de lado um pouco o smartphone, com seus posts e vídeos de testemunhos e receitas prontas de sucesso, para ler um livro que no seu título tem as palavras vida e proezas de alguém que tem um nome de marca de cuecas pode ser uma experiência bastante inusitada e inimaginável de encontrar as respostas que talvez estejamos buscando no lugar errado.

Pensar que o trabalho, o propósito e a vida possam ser compreendidos para além da performance, das metas e do sucesso e considerar o lucro, o dinheiro como asas que voam e queimam como a fênix (ave do Paraíso) para voltar a renascer em outro porto, em outra ilha, talvez tenha, quem sabe, um efeito terapêutico e inspirador, uma vez que evoquem uma verdade que durma bem escondida no fundo de nossos cansados corações.

Proponho que sentemos juntos à beira do fogo, do lado de fora da pousada de lata de uma praia deserta de uma ilha remota e, enquanto comemos pão (com glúten) e bebemos vinho (sem parcimônia), escutemos as histórias de um homem velho, meio maltrapilho e politicamente incorreto, que nos convida e repensar o sentido do trabalho, do descanso, do propósito, do dinheiro, da vida.

Gostaria de dedicar essa singela evocação a um grande amigo, médico humanista e encarnação espanhola de Zorbás, que voou ontem (29/09/25) para uma ilha desconhecida de onde não se retorna: Pablo González Blasco. Como disse Zorbás um pouco antes de expirar: “pessoas assim como eu não deveriam morrer”.


(*) Originalmente publicado em sua página pessoal.