Razão e emoção em O Retrato de Dorian Gray

O texto a seguir resume algumas ideias da conversa entre o nosso professor convidado Dante Gallian e Ricardo Mituti no episódio 13 do podcast Leia a bula. Ele trata apenas de um dos aspectos da riquíssima obra que é O retrato de Dorian Gray, livro do próximo programa Ética & literatura.

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O romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, é curto em extensão, mas imenso nos temas que aborda. Além de tratar de questões como vaidade, envelhecimento e dilemas morais – as que primeiro vêm à mente quando pensamos nesse livro –, a obra oferece uma sutil reflexão sobre o confronto entre razão e emoção. Wilde tece uma crítica à busca desmedida por controle racional e sugere que as emoções, embora imprevisíveis, desempenham um papel essencial na experiência humana. A questão dos limites da razão já aparece de forma bastante explícita na própria premissa do romance: o inexplicável envelhecimento da pintura no lugar do protagonista.

Escrito no final do século XIX, O Retrato de Dorian Gray emerge em um contexto vitoriano marcado pelo entusiasmo com as conquistas da ciência e da razão. Diante do sucesso, era comum que as pessoas as vissem como os únicos meios legítimos de conhecimento e, não só isso, como o caminho para resolver não apenas questões técnicas.

Nesse período, boa parte da sociedade – como ainda hoje – depositava uma confiança crescente na ciência como a chave para a compreensão de todas as facetas da existência humana, do progresso técnico à solução dos dilemas sociais e até pessoais. O romance de Wilde, no entanto, desafia essa mentalidade, promovendo uma reflexão crítica sobre os limites da ciência e do racionalismo como caminho exclusivo para a verdade.

A emoção nos desvia do caminho

Em uma passagem central do capítulo 3, Lord Henry, que é um personagem provocador e manipulador, afirma num momento de lucidez: “A vantagem das emoções é que elas nos desviam do caminho, e a vantagem da ciência é que ela não é emocional.” Esta fala valoriza as emoções de uma maneira incomum para a época. Como o caminho para a felicidade e o progresso humano não deve ser linear, técnico e controlado? O ponto é justamente que esse “caminho reto” ignora aspectos fundamentais da condição humana, e um deles é a  afetividade.

As emoções são parte da nossa condição e precisamos delas para enfrentar a vida de forma mais plena. A lógica, pelo contrário, busca continuamente previsibilidade e a redução de tudo a termos simples e distintos. Ao nos “desviarem do caminho”, as emoções nos abrem para novas possibilidades, forçando-nos a aceitar a complexidade e o caos da vida humana. O cientificista, com seu foco exacerbado na lógica, teria dificuldade em reconhecer esse valor, e Wilde, ao inserir essa fala no discurso de Lord Henry, questiona o ideal vitoriano de progresso puramente racional.

A questão parece distante, mas basta pensarmos um momento no cotidiano de diversas empresas para termos uma ideia. Quantos líderes não lamentam a “falta de engajamento” de seus colaboradores? Ou quantas campanhas publicitárias não procuram gerar “engajamento”. Ora, engajamento é emoção. O colaborador engajado é o que se entrega às tarefas não apenas de maneira fria e racional, mas também com emoção, parte inseparável da sua humanidade.

Na vida de Dorian, o protagonista do livro, vemos o extremo da negação emocional. Ele busca controle absoluto sobre sua aparência e sua vida, mas esse controle o afasta de sua própria humanidade. O afastamento das emoções, simbolizado pela busca de Dorian pela juventude eterna e a negação do envelhecimento, o transforma em um ser desumano, à mercê de seus desejos egoístas e capaz dos piores crimes.

A razão bruta: uma forma de violência

Um pouco antes do trecho citado, Lord Henry comentava: “Eu consigo suportar a força bruta, mas a razão bruta é absolutamente insuportável. Há algo injusto em seu uso. É um golpe abaixo do intelecto.”

Mais uma vez, o romance expõe os perigos de uma racionalidade desprovida de emoção ou sensibilidade.De novo, quantos já não testemunhamos tristes usos da “razão bruta” nos mais diversos ambientes, inclusive no trabalho?

A razão, quando isolada das emoções, pode desumanizar as pessoas e reduzir a vida a uma série de cálculos impessoais. O impulso de ordenar e controlar tudo através da ciência e da lógica, sem espaço para a incerteza, resulta na criação de espaços rígidos e insensíveis.

Essa crítica se mantém surpreendentemente relevante nos dias de hoje. Em uma era em que muitos acreditam que a tecnologia e a ciência podem resolver todas as questões humanas, o personagem de Wilde nos alerta para o fato de que a vida é muito mais do que uma série de problemas a serem resolvidos de maneira fria e calculada. A busca cega por controle racional, como a que vemos em Dorian, acaba gerando uma existência vazia e desumanizada.

A emoção nos humaniza

Oscar Wilde nos lembra, ao longo de O Retrato de Dorian Gray, que as emoções, apesar de nos desviarem do controle rígido que a razão tenta impor, são parte daquilo que nos torna humanos, assim como a razão. As emoções não apenas nos desviam de um caminho previsível, mas nos reconectam com aspectos mais profundos da nossa identidade. Elas nos lembram de nossa vulnerabilidade e nos fazem reconhecer a incerteza da vida como uma parte inevitável de nossa existência.

Longe de serem obstáculos à felicidade ou ao progresso, as emoções nos ajudam a compreender a complexidade da nossa experiência humana. Por conectarem-nos com a nossa fragilidade, conectam também com a nossa capacidade de empatia e conexão com os outros.

Como mencionamos, o trágico destino de Dorian Gray, que busca negar suas emoções e viver uma vida sem consequências, é um testemunho dos perigos de rejeitar esse aspecto essencial da humanidade. Sua busca pelo controle total, ao invés de libertá-lo, o aprisiona em uma existência vazia e terrível, alienada dos outros e de si mesmo.

Esta reflexão é apenas um dos aspectos desse romance. Há ainda muito mais. Participe do próximo encontro do nosso programa Ética e literatura, que será justamente sobre O retrato de Dorian Gray. Para informações e inscrições, basta acessar aqui.