Por que a Literatura? O que a Literatura pode ensinar a cada um de nós?
Podemos responder essa pergunta da seguinte maneira: “A Literatura ensina poucas coisas, porém insubstituíveis”.
As coisas que a Literatura pode procurar e ensinar são pouco numerosas mas insubstituíveis: a maneira de ver o próximo e a si mesmo, de atribuir valor às coisas pequenas ou grandes, de encontrar as proporções da vida, e o lugar do amor nela, e sua força e o seu ritmo, e o lugar da morte, a maneira de pensar ou não pensar nela” e outras coisas “necessárias e difíceis” como “a rudeza, a piedade, a tristeza, a ironia e o humor”.
Antoine de Compagnon
Vejam: a Literatura ensina o verdadeiro valor das coisas. Não aquele produzido pelo mercado. Não aquele que pode ser medido, comprado e pago. Nem sequer aquele que a gente encontra na rua, na sociedade, no desempenho da atividade jornalística.
De fato, sabemos que há coisas extremamente importantes na vida, e também sabemos que muitas vezes não percebemos o seu valor.
A Literatura, por exemplo, ensina as proporções da vida. Desde a época dos gregos, os homens têm tentado conhecer a medida certa, o limite entre o que é uma vida plena, completa, feliz, ou uma vida fragmentada, incompleta, neurótica. Como saber o quanto devemos dedicar-nos às coisas e às pessoas? Como saber se as coisas que vemos, as coisas que fazemos, tudo aquilo com o que estamos em contato online…está ou não fora de proporção?
A Literatura ensina o lugar do amor na vida. E a sua força; seu ritmo. C.S. Lewis dizia que a única certeza que tinha era de que o homem foi criado para amar e ser amado. Como fica o amor, como ficam as relações afetivas, como ficam os nossos sentimentos num mundo competitivo, eficiente e técnico? Será que ainda há espaço para o amor nas nossas vidas ou já desistimos dele em troca do sucesso profissional?
Sobre isto a Literatura tem muito a ensinar. Nada disto se aprende no colégio, na escola, e muito menos nos livros didáticos da graduação ou da pós. A Literatura é o laboratório onde aprendemos não só o que é o ser humano mas como é que é ser humano.
Por que a Literatura foi esquecida?
A Literatura foi esquecida porque colocamos como paradigma do conhecimento apenas aquilo que é científico e técnico. A ciência moderna cresceu a partir da premissa de que a melhor maneira de conhecer algo ou de resolver algum problema é dividi-lo em partes, simplificá-lo e reduzir os fatores a serem considerados.
A questão crucial é a seguinte: e se aquilo que estamos querendo considerar não for redutível? E se todos os seus aspectos forem importantes? E se, como acontece com tudo o que é humano, o assunto não é simples mas complexo?
O homem é um ser unitário e complexo e a ciência quis transformá-lo num ser fragmentado e simples. Seria ótimo se fosse assim, mas a realidade continuamente indica-nos que não é. Que não dá para separar o objetivo do subjetivo, o externo do interno, a razão do sentimento. Por que cargas d’água se insiste tanto na desqualificação de tudo o que seja afeto, sentimento e coração?!
Gostaria de citar um trecho de Susana Tamaro:
[…] quem confia no próprio coração é um insensato, dizia amiúde Augusto citando a Bíblia. E por que cargas d´água deveria ser insensato? Talvez porque o coração se pareça com uma câmara de combustão? Porque está escuro lá dentro, há escuridão e fogo? A mente é tão moderna –pensa-se então- como o coração é antigo. Quem liga para o coração –pensa-se então- ainda está perto do mundo animal, do descontrolado, ao passo que quem cuida da razão se aproxima das mais elevadas reflexões. E se as coisas não fossem assim, se a verdade fosse exatamente o contrário? E se fosse justamente esse excesso de razão o que desnutre a vida?
Encontramo-nos diante de uma das questões mais cruciais do momento histórico que vivemos: o que fazer com os sentimentos? Como toda uma sociedade pode me exigir para ter um relacionamento frio, distanciado e neutro com as questões mais vitais da minha existência e da minha sociedade, que são precisamente as que mais me tornam humano? Que tipo de profissional estamos criando quando não sabemos mais o que fazer com os sentimentos nem com as emoções? Será mesmo que esse profissional é humano?
Observando um dia as várias antenas que vibravam no ar, pensei que o homem cada vez mais se parece com um rádio capaz de sintonizar-se apenas numa faixa de frequência. É mais ou menos o que acontece com os radinhos que vêm como brinde nos pacotes de sabão em pó: embora todas as emissoras apareçam no dial, nunca se consegue pegar mais de uma ou duas, e todas as demais continuam zumbindo no ar. Tenho a impressão de que o uso excessivo da mente conduz aproximadamente aos mesmos resultados: de toda a realidade que nos cerca, só conseguimos perceber uma faixa restrita
O esquecimento e a eliminação sempre foram respostas fáceis quando não se sabe lidar com um assunto. É o que o mundo da ciência, da tecnologia e da empresa tem nos exigido com relação aos sentimentos. Esse foi o preço a pagar.
Por isso, estamos no meio de uma queda um tanto especial. Vejamos esse trecho do Apanhador no campo de centeio:
É do tipo horrível, porque a gente cai, cai e não percebe nem sente nada. Não nos damos conta que estamos caindo, mas estamos. É o tipo de queda – diz o professor – que só acontece com aqueles que procuram alguma coisa que o seu próprio meio não pode lhes proporcionar e abandonam a busca. Abandonam-na antes mesmo de começá-la.
Qual é o meio em que estamos? A civilização técnica. Prometeram-nos tudo: felicidade, vida justa, progresso contínuo, conhecimento e sabedoria. O que é que perdemos? Qual foi o preço que tivemos de pagar?
Perdemos especificamente a capacidade de relacionar-nos com os outros. Estamos ficando cada vez mais individualistas, porque esse tipo de comportamento é a única garantia para termos sucesso pessoal.
Mais: não é apenas que perdemos a capacidade de ter e lidar com sentimentos, afetos e amor: desistimos de procurar cada uma dessas coisas. Quem procura sentimentos ou afetos ou mesmo amor nos tempos atuais pode acabar visto (e ver-se) como um perdedor, um looser.
É aí que entra a Literatura como uma forma específica e qualificada de conhecimento. A Literatura dilata o tempo e o espaço da nossa queda e, talvez, se nos deixarmos encantar por ela, acabe por impedir a nossa queda. A Literatura, a boa literatura, é como um sinal de PARE no nosso quotidiano: Pare e pense!! Ou, se quiserem algo mais agressivo, como um soco no estômago, ou uma batida de carro. Ela nos força necessariamente a parar.
Hannah Arendt distingue entre conhecimento e pensamento. Conhecimento é fácil, ela diz, é o que aprendemos com a técnica, a ciência e o método. Utilizando-os adequadamente conseguimos saber o que uma coisa é e para que serve. Pensamento é outra coisa. É refletir sobre si, cair em si, tomar conhecimento e que, infelizmente, também é ela quem o diz, quase ninguém faz mais na sociedade contemporânea. Contudo, é o mais necessário porque se o homem se acostumar a não pensar acabará perdendo a capacidade de discernir o bem do mal.
Como chegamos a essa situação?
A literatura dá uma resposta de três partes a essa pergunta.
1. Criamos uma nova cultura: a cultura do trabalho
Criamos uma nova cultura, a cultura do trabalho: Para que isto pudesse ser mantido em pé, ou seja, para que os seres humanos não percebessem a incoerência do mundo em que estavam vivendo, criou-se uma nova cultura do trabalho. Foi preciso criar as condições para que homens e mulheres estivessem as 24 horas do dia trabalhando. Se não isso, o mais próximo disso possível. Tornamo-nos frios, insensíveis, distantes, duros porque, do contrário, não triunfaríamos na vida profissional. Vejamos esse trecho de Mitch Albom:
O que foi que aconteceu comigo? Aconteceram os anos 1980. Aconteceram os 1990. Morte e doença, gordura no corpo e calvície aconteceram. Barganhei montes de sonhos por cheques cada vez mais gordos e nem percebi que estava fazendo isso.
E agora Morrie na minha frente, falando com o entusiasmo de nossos anos de universidade, como se simplesmente eu tivesse chegado de umas férias prolongadas.
– Encontrou alguém com quem dividir o coração?…Tem procurado ser humano ao máximo da sua possibilidade?
– Eu me contorcia….Já estava há dez anos em Detroit, no mesmo local de trabalho, utilizando o mesmo banco, frequentando o mesmo barbeiro. Tinha trinta e sete anos, era mais aplicado do que na universidade, vivia ligado a computadores, modems e telefones celulares. Escrevia sobre atletas ricos, que na maioria nem estavam aí para pessoas como eu…Meus dias eram cheios, e no entanto eu vivia insatisfeito a maior parte do tempo. O que foi que aconteceu comigo?
Eu criei a minha própria cultura – a do trabalho. Fiz quatro ou cinco matérias na Inglaterra, com elas praticando malabarismos como palhaço. Passava oito horas por dia num computador, mandando matérias para os Estados Unidos. Fiz matérias para a televisão, viajando com uma equipe por várias partes de Londres. Toda manhã e toda tarde mandava reportagens de rádio por telefone. Não se tratava de uma atividade incomum. Durante anos, fiz do trabalho o meu companheiro, e empurrei tudo o mais para o escanteio… O que foi que aconteceu comigo?
2. Abandonamos os sentimentos
Depois, fomos deixando de lado qualquer sentimento, desconfiando deles, achando que “sentir” não é compatível com pensar; que “ter sentimentos” numa relação profissional é próprio de “gente fraca”, que não tem controle sobre suas emoções.
Não me parece exagero afirmar que o século XX assistiu ao desmoronar dos relacionamentos. Somos incapazes de criar relações, de formar vínculos. Temos tanto medo de sofrer, revolta-nos tanto sentir-nos vulneráveis e carentes que preferimos não ter vínculo nenhum e, quando tentamos ter, não sabemos como fazer, porque já criamos uma couraça ao nosso redor. Como escreve Susanna Tamaro:
É durante a adolescência que uma invisível couraça começa a formar-se ao nosso redor. Forma-se durante a adolescência, e continua endurecendo por toda a vida adulta. O processo do seu crescimento é um tanto parecido com o das pérolas: quanto maior e mais profunda a ferida, mais forte a couraça que se forma em volta.
[…]
Cresci, pois, com a sensação de ser uma espécie de macaco a ser treinado, e não um ser humano, uma pessoa com as suas alegrias, decepções, com a sua necessidade de ser amada. Este desconforto fez logo brotar em mim uma grande solidão, uma solidão que com os anos avultou-se, uma espécie de vazio pneumático em que me movia com os gestos lentos e desengonçados de um escafandrista. A solidão também nascia das perguntas, perguntas que fazia a mim mesma e às quais não sabia responder.
3. O mito do homem moderno
Finalmente, para que tudo isto nos parecesse algo normal, foi preciso construir um conceito, uma imagem ou, se quiserem, um mito do homem moderno. Para conseguirmos um mundo onde a experiência do ser humano é uma experiência racional, fria e competitiva, criamos um conceito de homem que simplesmente não é real:
Porque o adjetivo humanus me é tão suspeito quanto o seu substantivo abstrato humanitas, a humanidade. O que eu quero não é nem o humano nem a humanidade, nem o adjetivo simples, nem o adjetivo substantivado, mas o substantivo concreto: o homem. O homem de carne e osso, que nasce, sofre e morre –sobretudo morre –, que come, e bebe, e brinca, e dorme, e pensa, e quer, o homem que se vê e a quem se ouve, o irmão, o verdadeiro irmão.
Porque há outra coisa, que também chamam de homem, e é o sujeito de não poucas divagações mais ou menos científicas. E é o bípede sem penas da lenda, o zoón politicon de Aristóteles, o contratante social de Rousseau, o homo oeconomicus dos manchesterianos, o homo sapiens de Lineu ou, se se quiser, o mamífero vertical. Um homem que não é nem daqui nem dali nem desta época nem da outra, que não tem nem sexo nem pátria, uma idéia, em fim. Isto é, um não homem. […] o homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal afetivo ou sentimental. E talvez o que o diferencia mais dos outros animais seja mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes raciocinar um gato do que rir ou chorar. (Miguel de Unamuno)
Como a Literatura pode nos humanizar?
Tentei mostrar como a Literatura pode nos ensinar que há algo de muito errado na sociedade que estamos construindo. É preciso, se quisermos ser verdadeiramente humanos, dar valor aos sentimentos e às relações.
Agora gostaria de mostrar como a Literatura nos faz tomar consciência de algumas características importantes da vida humana. A literatura, de fato, força-nos a cair em si. Penso que nos permite criar uma ponte entre o universal da teoria, do conceito, da abstração e o singular, que somos cada um de nós. Permite-nos enxergar o concreto, o real circunstanciado, na sua simultânea concretude fática e universalidade abstrata. Lendo vemos os homens e as mulheres de carne e osso. Vemo-nos a nós próprios, coisa que a vida profissional e empresarial muitas vezes nos oculta ou esconde.
Vou falar de quatro características profundamente humanas, que a Literatura nos relembra, e que a gente já esqueceu:
1. A Literatura ensina-nos que não estamos sós
Nós não somos os únicos que sofremos com as coisas do jeito que estão. Esta experiência está registrada nas páginas das grandes obras da literatura.
[…] você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enjoada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia” (J. D. Salinger).
2. A Literatura ensina-nos que somos carentes
A Literatura ensina-nos que somos carentes, mas que isso não é problema, ao contrário: é a solução. O homem é estruturalmente carente. Como já lembramos, C. S. Lewis dizia que a certeza que tinha sobre os homens é que fomos criados para amar e ser amados. No entanto, não resolve nada ser amado hoje e amanhã, não. Nossa carência essencial é tão estranha que, mesmo que estejamos sentindo que se preenche a nossa carência hoje, ela nunca se completa, porque o minuto seguinte também precisa ser preenchido. Nas palavras do filósofo Julián Marías:
Acredito que é precisamente nessa limitação que reside o supremo atrativo da felicidade.Por quê?Porque revela o caráter mais próprio do homem, aquele que é irredutível e não encontra equivalente na vida animal nem nas formas “coisificadas” da vida humana.
Penso na condição intrinsecamente indigente ou carente do homem. O homem necessita de muitas coisas […] e não é apenas isso: o homem não necessita apenas do que não tem, mas que continua necessitando do que tem, e muito especialmente das pessoas. A indigência humana não termina nunca, a sua carência não acaba com a presença, com o ganho, com o gozo, com a posse, com todas as formas de realização que se possam imaginar. Na medida em que as necessidades são autenticamente pessoais, são inextinguíveis, perduráveis, estão penetradas de duração ilimitada.
3. A Literatura ensina-nos a dar valor às relações humanas
A Literatura nos ensina a dar valor às relações humanas, às relações afetivas, sentimentais, amorosas, porque são as únicas que nos mantêm como seres humanos. Acontece que o sentido da urgência, da pressa, da eficácia e do “já” e “agora” não nos permite perceber como são importantes o tempo vivido, a espera, a incerteza, o longo processo que permeia o estabelecimento de qualquer relação humana. Lembremos do muito citado trecho da raposa em O pequeno príncipe:
– Eu procuro amigos. Que quer dizer “cativar”?
– É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa “criar laços.
– Criar laços?
– Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…
Começo a compreender, disse o principezinho.
Mas a raposa voltou à sua ideia.
– Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música.
– Por favor… cativa-me disse ela.
– Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
– A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo para conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos, Se tu queres um amigo, cativa-me!
– Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
– É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto …
No dia seguinte o principezinho voltou.
– Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração … É preciso ritos.
– Que é um rito? perguntou o principezinho.
– É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa, É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas.
Um pequeno parênteses
A estrutura da vida humana precisa da imediatez da presença. A alternativa que está modificando radicalmente as nossas relações está na internet. A tecnologia pretende resolver essas insuficiências e dar-nos uma sensação de normalidade.
Para isso nada melhor do que o conceito de “Perfil”.
O perfil passa a ser a versão digital de quem somos. Será esse perfil psicológico quem se relacionará com os perfis das outras pessoas que possam ser compatíveis. Reparem é o perfil, o avatar, que se relaciona, nós, não, embora pareça que sim.
De maneira geral, o usuário tenderá a construir o seu eu a partir das seguintes categorias possíveis:
- “meu aspecto”: oito possibilidades para descrever a cor dos olhos, treze possibilidades para descrever o cabelo, outros aspectos curiosos como tatuagens, e uma categoria além do subjetivo: qual é a tua melhor parte?
- “meus interesses”, com box para “o que fazes quando te queres divertir?” Ou “que esportes praticas?” ou “quais são tuas coisas favoritas”? Aqui entra normalmente uma questão para facilitar a empatia e a inter-relação: quais os interesses que gostarias de compartilhar?
- “estilo de vida”: comidas, dietas, bebidas, cigarro, mascotes, mascotes normais, mascotes exóticos;
- “valores” com questionários sobre fé, prática da fé, mais crente, menos crente, mais fanática, menos fanática, ateia, mais ateia, menos ateia; sobre a política, mais para esquerda, mais para a direita, em lugar nenhum…
Pronto! Com isso, os outros já me conhecem antes de me conhecer e, melhor, eu me conheço depois que me defino…
O que me interessa destacar aqui é que estamos criando uma nova forma (também deturpada) de lidar com os sentimentos. Os sentimentos agora são textualizados ou, se quiserem, nos mostramos aos outros não por meio de sentimentos, mas por meio de textos que objetivam e classificam os nossos sentimentos: gostei, não gostei, carinha sorrindo, emojis etc.
4. A Literatura ensina-nos que a vida é insegura
A Literatura ensina, ao contrário do que costumamos pensar, que a vida do homem é insegura e contingente. Não temos o controle nem das nossas vidas, nem do mundo. Por mais que a ciência e a técnica insistam nessa tecla, há muito de gratuito, de graça, de dom, de acaso, de azar, de fortuna. De providência ou de destino, como prefiram nomear essa realidade.
Leiamos dois trechos de Grande Sertão: veredas:
Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso!
[…]
No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso” (Grande Sertão, p. 101).
A Literatura envolve o leitor e o livro, o eu do leitor com os muitos eus das personagens, aproxima experiências, força a comparação, faz com que nós, enquanto leitores, não abdiquemos da nossa condição de humanos. É uma forma de conhecimento que não é nem analítica nem simplificadora, mas é reflexiva, intimista e complexa.
Vocês talvez pensem: Certo, mas a Literatura não resolve nenhum problema. E concordo. Não resolve mesmo nenhum problema, porque a vida não é um problema que precisa ser resolvido. A vida não é uma instalação hidráulica. O ser humano não é uma equação matemática.
A vida é um drama, que tem de ser vivido. Que cada um de nós vive, melhor ou pior, na medida que compreende bem o que é ser humano. Por isso a Literatura.
Parece-me que a literatura permite, como diria Ortega y Gasset, encontrar os ossos e a carne dos conceitos. Dá-nos a circunstância, a complexidade, a ambiguidade, a cor e a textura do real… Tudo aquilo que o conceito abstrato nos esconde e teima em fazer-nos acreditar que não existe quando, na verdade, é o que dá o tom e o sentido humano da vida: a tensão de uma espera, a ansiedade de uma procura, as lágrimas de uma derrota, a alegria inexprimível de um encontro…
Mas para convencer-se disto é preciso realmente deixar-se encantar pela Literatura.
Gostaria de acabar com umas palavras de Daniel Pennac, saindo ao encontro de uma possível objeção que poderia estar rondando a cabeça de muitos: “Gostaria de ler, mas quem tem tempo?”
O tempo para ler é sempre um tempo roubado. (Tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o tempo para amar)
Roubado a que?
Digamos, à obrigação de viver.
(…) O tempo para ler, como o tempo para amar, dilata o tempo para viver.
Se tivéssemos que olhar o amor do ponto de vista de nosso tempo disponível, quem se arriscaria? Quem é que tem tempo para se enamorar? E, no entanto, alguém já viu um enamorado que não tenha tempo para amar?
Eu nunca tive tempo para ler, mas nada, jamais, pôde me impedir de terminar um romance de que eu gostasse.
A leitura não depende da organização do tempo social, ela é, como o amor, uma maneira de ser.
A questão não é de saber se tenho tempo para ler ou não (tempo que, aliás, ninguém me dará), mas se me ofereço ou não à felicidade de ser leitor.
Texto originalmente publicado em:
https://rafaruiz.wordpress.com/2016/03/14/221/


