Eu não posso deixar de amar! Sem isto, não há vida. Fazer da vida um romance é o que pode haver de bom. O meu romance nunca se interrompe no meio, e também este eu hei de levar ao fim.
— Liev Tolstói, Felicidade Conjugal
Felicidade Conjugal, romance de juventude de Liev Tolstói, pode parecer à primeira vista uma história simples sobre um relacionamento entre duas pessoas. Mas sob sua forma breve e delicada, a obra propõe reflexões profundas sobre o amor, o amadurecimento e a convivência: temas que atravessam tanto a vida pessoal quanto os ambientes profissionais.
Sim, o ambiente profissional. Pois questões humanas — desejo, frustração, cuidado, compromisso — não se encerram ao cruzar a porta do escritório. Elas continuam atuando, discretamente, nas decisões que tomamos, nas relações que cultivamos e mesmo nos conflitos que evitamos ou enfrentamos. A literatura, ao nos colocar diante dessas dimensões da experiência humana, pode ser uma poderosa aliada no processo de formação de líderes mais conscientes e ambientes mais humanos.
Narrado em primeira pessoa por uma jovem recém-casada, Felicidade Conjugal nos mostra seu percurso de transformação afetiva. O que começa como encantamento e idealização logo cede lugar a pequenas rupturas, silêncios e ajustes de expectativas. A paixão inicial dá lugar a uma forma de amor menos arrebatadora — e talvez mais exigente. É nesse ponto que o livro se torna particularmente instigante. Tolstói nos convida a refletir sobre a transição do amor como paixão para o amor como construção, que exige razão, presença, escuta e compromisso. O mesmo se pode dizer de muitos relacionamentos: nem todo entusiasmo inicial se sustenta sem amadurecimento mútuo. Convivência – seja no lar, seja no trabalho – exige esforço, não apenas afinidade.
O livro, com sua riqueza de detalhes, não descarta a afinidade e o seu papel. É ela que no momento inicial de um relacionamento tira alguém da sua “zona de conforto” e a enche de otimismo. Nesse sentido, ela está na franqueza de uma das citações mais memoráveis do livro: “Eu não posso deixar de amar! Sem isto, não há vida”; a perspectiva de uma existência sem afeto – ou em que ele é engavetado em um compartimento isolado da nossa mente – é aterradora.
Por outro lado, essa mesma frase também deixa entrever que “fazer da vida um romance” é comprometer-se com histórias que se desenrolam como uma narrativa com mais fôlego, que tem altos e baixos, ambiguidades, imprevisibilidade e até momentos mais “secos”.
Estamos em tempos de decisões aceleradas — inclusive as afetivas,que são tomadas com um deslizar na tela do smartphone —, métricas e respostas prontas. Simultaneamente, lamenta-se a falta de compromisso — ou “engajamento”, como costuma se dizer nas organizações —, talvez sem a percepção de que há uma relação causal entre os dois fenômenos. Quanto menos tempo dedicamos à riqueza da nossa existência, quanto menos consideramos aquilo que é próprio do humano, mais dificultamos que alguém entregue-se de verdade a uma relação, seja ela de que natureza for, afetiva ou profissional.
Com sua riqueza de nuances e o mergulho profundo na psicologia da protagonista, Felicidade Conjugal não oferece respostas fáceis aos seus leitores. A pequena (no número de páginas) obra-prima de Tolstói convida-os, em vez disso, a deter-se sobre a experiência de amar e crescer com o outro que, embora profundamente pessoal, tem implicações universais. Em um mundo que constantemente nos leva a escolher entre a simplificação e a humanização, a literatura nos lembra de quem somos de verdade.
Assim, ao final da leitura, talvez ainda reste a dúvida: é possível a felicidade conjugal? Mas pode-se fazer ainda outra pergunta: estamos dispostos a cultivar relações — pessoais ou profissionais — com o mesmo cuidado, paciência e abertura ao tempo que a obra nos propõe? Criamos as condições para que essas relações possam existir?
Essa é uma das questões que trataremos nas próximas sessões do programa Ética & Literatura, com condução do professor convidado Dante Gallian.
As discussões sobre Felicidade Conjugal começam em 30 de agosto de 2025. Para saber mais e inscrever-se, clique aqui.


