Os homens são frágeis. De diversas formas nós, humanos, somos suscetíveis, vulneráveis e até mesmo quebradiços, e por isso dispusemos de nossa tão comemorada racionalidade para desenvolvermos formas de evitar que sejamos atingidos pelas intempéries da vida. A tecnologia, a psicanálise, a medicina… conscientes de nossa debilidade, sabem que poucas coisas nos atordoam mais do que o medo de um futuro incerto e a morte, quem sabe, resultante dele.
A “treva branca” que misteriosamente acomete os personagens do inquietante Ensaio sobre a cegueira de José Saramago não os levaria à morte, como tantas outras pestes mortíferas que já surgiram na história do mundo. Em vez disso, suscita neles receios o mais significativamente humanos, despindo-os dos artifícios que lhes dão – e a nós todos – diariamente a impressão de segurança. Ela os obriga a aflorar sua substância enquanto humanos. Em momentos de profunda crise, as máscaras caem e somos lançados ao mundo tal como somos, munidos somente daquilo em que, de fato, acreditamos.
Tudo começa com um homem que dirige seu carro no fluxo frenético da cidade grande. Quando o farol do cruzamento se abre, os carros desejam avançar, mas são impedidos por este homem, que, ao ser tomado por uma cegueira abrupta, não move seu automóvel. Ele tenta pedir por ajuda em meio aos protestos dos demais condutores apressados. Mas logo surge um bom samaritano que se oferece a levá-lo até sua casa. Após deixar o cego em seu apartamento, parte, levando consigo o carro que não lhe pertencia.
Quem roubaria o carro de um cego?… Ou o pouco que tem um miserável? Ou o alimento de uma criança? E já nos primeiros momentos da história, somos intimados a enxergar a doença que antecede a cegueira e que se mostraria ainda mais cruel na continuidade dos fatos: ainda que nossos olhos estejam sãos, quão cegas estão nossas almas? O narrador logo sugere a resposta: “A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as atividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca”.
Antes mesmo da doença, quando o véu da normalidade nos envolve e embala nosso sono quente, no aconchego de nossas casas confortáveis, com boa comida na mesa, há uma outra peste que se esgueira em cada esquina. Estamos perdendo nossa humanidade pouco a pouco e, de vício em vício, nos habituamos a ver o mundo de forma fria e individual, encontrando desculpas para nossos pequenos egoísmos e fechando os olhos para aquilo que independe das ideologias ou de posições políticas. Não queremos dialogar. Não queremos enxergar o outro, “(…) a cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu.”
Rapidamente, assim como o bom samaritano, encontramos uma boa desculpa para furtar o carro de uma pessoa indefesa. Quanto mais apáticos nos acostumamos a ser, menos nos impressionam a violência, a injustiça e a miséria recorrentemente apresentadas na televisão. Banalizamos o mal e não nos vemos como iguais, merecedores de respeito e afeto. Em decorrência disso, ao primeiro sinal de uma doença epidêmica desconhecida, nos vemos ameaçados ao potencial de uma total entrega à selvageria, à discórdia e ao caos, como nos mostra a trama.
Um tempo depois, o cego busca a ajuda de um médico especialista, mas a cegueira branca passa a espalhar-se rapidamente, atingindo a todos que estavam no consultório. Quando desperta no dia seguinte, o oftalmologista não pode ver nada além de luzes brancas difusas, semelhantes a um “mar de leite”, e constata que também ele foi infectado. Pouco a pouco, todos são engolidos por aquela estranha cegueira branca, exceto sua esposa, que o acompanha por todo o tempo e, curiosamente, permanece enxergando.
Os primeiros doentes são isolados nas instalações de um manicômio desativado, que logo se torna insuficiente para os novatos que chegam sem parar. O descaso e abandono completo por parte do poder público faz com que os alimentos sejam cada vez mais escassos e a imundice mais latente. Largados à própria sorte, os internos rapidamente testemunham os atos mais horrendos. Um grupo de “cegos malvados” se aproveitam da fragilidade da situação e, em posse de um revolver, passam a confiscar as poucas caixas de comida disponíveis, exigindo, em troca, bens valiosos e os corpos das mulheres, postos agora como condição para que todos pudessem comer.
A doença primeira, original, se manifesta no coração dos homens quando esses, seduzidos por seu orgulho e incentivados pelo desespero e o medo, alienam sua consciência e abrem mão da empatia – as quais, creio, são naturais a todos nós, desde pequenos, e são partes fundamentais do que nos torna mais humanos. Em meio à visão de tanto desprezo e crueldade, aqueles que ainda se permitem afetar pela dor dos outros observam, enlutados, o falecimento em vida daqueles que se esqueceram de como sentir compaixão. A “treva branca” escancara a todos essa grande perda.
Então, estaremos nós todos perdidos? Há esperança em um mundo povoado pelos destroços de tanta cegueira?
Já bem sabiam os antigos filósofos que a dor, curiosamente, possui um poder duplo e, se por um lado destrói, também transforma e fertiliza a alma humana; como o carvão que, não raro, se transforma em diamante depois de muito calor e pressão.
Em meio a tanto sofrimento, nossos cegos se reúnem em torno de um pequeno radinho de pilha para ouvir notícias do mundo exterior. Quando os dedos trêmulos do velho “paciente da venda preta” tentavam sintonizar as estações, parou por acidente em uma canção que soava tão despreocupada, que até dava a impressão de que o mundo todo não se tinha transformado num caos. Saudosa da felicidade que já não existia, a “rapariga dos óculos escuros” pede pela música: “Deixa estar só um bocadinho (…)”. E, então, embalados pela canção, se esquecem de tudo por um minuto, se refugiam nas suas memórias, dão um sorriso em comunhão.
A esposa do médico, a única naquele lugar esquecido que ainda enxerga, doa-se por inteiro para cuidar dos demais desprotegidos. Alimenta, limpa, organiza e, principalmente, oferece todo o carinho e apoio àqueles homens perdidos. Tal como uma mãe que nina o filho doente, ou tal como Atlas, carrega o mundo de todos eles em suas costas, certa de que tem força suficiente dentro de si para enxergar por todos. Essa mulher, tão humana, guia a todos em sua cegueira. Carentes de comida e de proteção, os leva para sua própria casa quando conseguem fugir do confinamento, e se deparam com uma cidade completamente arrasada…
É bem verdade que estamos todos nos cegando. Uma vez tomados de assalto pela doença, muitos são levados a mostrar o que há de mais desumano dentro de si. Contudo, aqueles que se permitem ser tocados e que, como a esposa do médico, encontram força para olhar além de si e dividir a fé que possuem com os demais, são potencialmente tão contagiosos quanto a própria cegueira.
A tão assustadora vulnerabilidade humana é, muitas vezes, a medida que desperta em nós a necessidade de olhar para a fragilidade de nossos iguais e, através desse olhar, enxergamos neles a mesma substância humana que nos preenche. Tomamos assim consciência de que todos somos importantes e, unidos, podemos, dos cacos, reconstruir nosso mundo. Talvez, por isso, a mais difícil tarefa seja a de olhar por aqueles cegos de alma, que não nos enxergam e, em resposta, honrá-los como homens tal como são.
“(…) Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”, e só poderemos fazer com que nossos cegos enxerguem, se eles se permitirem ser tocados por aqueles que vêem o mundo através de sua humanidade.
A dor, a morte, o abandono, a cegueira… todos os horrores que nos assolam de forma gritante, quando a doença chega, na realidade estão escondidos há muito tempo, nas esquinas escuras, nas justificativas distorcidas, na miséria humana como um todo. E tudo que fazem diante de uma contaminação sem explicações é ganhar as ruas às braçadas e nos desafiar a lutar e a lembrar que, se há tanto mal no mundo, igualmente e na mesma medida podemos fazer tanto bem.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira.
Editora Companhia das Letras, 2013,
Publicado na Revista Livro & Café
Artigo elaborado sob a orientação do Núcleo Humanismo e Empresa.
Originalmente publicado em: https://ise.org.br/nuhem-artigos/ensaio-sobre-a-cegueira-e-a-cura-para-a-doenca-que-ninguem-ve/


