Neste artigo*, Dante Gallian parte do mito de Édipo, uma das narrativas mais influentes da História, para refletir sobre a preocupação excessiva com os próprios objetivos, o desprezo dos detalhes e suas consequências verdadeiramente trágicas.
Em Édipo Rei, tragédia de Sófocles (século V a.C.) — uma das histórias mais icônicas e influentes do imaginário da humanidade —, a cena inicial do primeiro ato nos lança numa situação dramática, quase desesperadora. Os sacerdotes, acompanhados de crianças e mulheres, levam oferendas ao templo do deus Apolo, protetor da cidade de Tebas, e entoam súplicas e lamentos frente à situação terrível em que se encontra a polis havia já algum tempo: estiagem inaudita, colheitas pífias, águas poluídas, mulheres estéreis, fome, peste, morte… Poucos anos antes, um estrangeiro chamado Édipo tinha livrado o sofrido povo de Tebas de situação semelhante, devido à maldição imposta pela Esfinge que se postou na porta principal da cidade e não permitia que ninguém entrasse ou saísse se não desvendasse seus capciosos enigmas. Acéfala de governante, assassinado na estrada que levava ao famoso Oráculo de Delfos, o povo tebano havia oferecido o posto máximo de rei e a mão da rainha viúva, Jocasta, a quem vencesse o terrível monstro. Com arguto raciocínio, Édipo decifrou-lhe a charada e, depois de ter se casado com a rainha — que, na verdade, era sua própria mãe — tornou-se rei, devolvendo a prosperidade à polis. Por um tempo. Agora, porém, tudo mudou de repente, e consultado o Oráculo, Édipo fica sabendo que a calamidade atual se deve a uma injustiça que prevalece, uma vez que o assassino do antigo rei, Laio, continua vivendo impune entre os tebanos.
Sinceramente preocupado e disposto a descobrir o paradeiro do assassino para, assim, mais uma vez, salvar o povo que tão bem o acolheu, Édipo manda chamar o único homem capaz de revelar a identidade e o paradeiro do assassino: Tirésias, o vidente cego. Este, porém, ao saber a causa de sua convocação, lamenta-se e recusa-se a revelar a verdade, já que o culpado não é outro senão o próprio consultante. E assim, à medida que a trama se desenrola, ficamos sabendo que Édipo, o rei estrangeiro, era, na verdade, filho de Laio e Jocasta, e que devido a uma profecia do Oráculo, que previra, no tempo de seu nascimento, que este filho haveria de matar o pai e casar com a própria mãe, fora enviado para morrer no campo, devorado pelas feras. Salvo, contudo, por um pastor coríntio que se apieda da criança e a leva para os seus reis, inférteis, Édipo passa a ser criado como príncipe herdeiro até descobrir por si mesmo a terrível profecia do délfico Oráculo. Horrorizado, Édipo abandona a casa de seus pais adotivos em Corinto, imaginando assim estar fugindo de seu destino, sem saber, entretanto, que caminhava a passos largos para seu pleno cumprimento. Dirigindo-se então para a cidade de Tebas, cruza no caminho com um velho, acompanhado de uma pequena comitiva, que, arrogantemente, força a passagem e derruba o jovem Édipo ao chão. Obnubilado pelos sentimentos que pesam em seu coração e cegado pela ira, Édipo assassina brutalmente o velho Laio, sem fazer a mais remota ideia de que se tratava de seu pai biológico. Ao chegar a Tebas, vencendo a Esfinge, casa-se com sua mãe, Jocasta.
Entusiasmado com seus mais recentes sucessos, Édipo acredita não apenas ter escapado de seu terrível destino, como ainda das consequências de sua violenta ação. A passagem do tempo, entretanto, coloca-lhe involuntariamente diante da verdade — verdade esta que Édipo terá de enfrentar.
Se a tragédia de Édipo nos faz pensar, num primeiro momento, na incomensurabilidade do destino, tema tão recorrente para os gregos antigos e ainda tão incômodo para nós, modernos, ela nos oferece, por outro lado, uma oportunidade para refletir sobre uma questão bem mais sutil, porém de extrema importância na atualidade: a da atenção aos detalhes. Sim, porque se a princípio podemos julgar Édipo como uma trágica vítima do destino, uma vítima de algum joguete dos deuses, se prestarmos mais atenção e analisarmos com cuidado, veremos que a precipitação dos acontecimentos e a realização da profecia acaba sendo de total responsabilidade do sujeito. Édipo foge para não matar seu pai e se casar com sua mãe. No entanto, em sua fuga desesperada, acaba matando um desconhecido no caminho. Quando acusado por Tirésias, Édipo se indigna, alegando pureza de consciência, sem se dar conta de estar esquecendo desse “pequeno detalhe”. Pode-se alegar, claro, que tal ato se deu em legítima defesa; de que ele estava de “cabeça quente”, fortemente afetado pelas terríveis previsões reveladas pelo Oráculo, etc. O fato, todavia, é que este “pequeno detalhe” acabou sendo o desencadeador de toda tragédia que Édipo queria a todo custo evitar, com a melhor das intenções.
Toda esta digressão edípica, provocada pelas discussões com um grupo de atentas e argutas senhoras que participam dos encontros de Laboratório de Leitura, apareceu-me de forma muito contundente em função da tremenda experiência de desatenção que tem marcado nosso cotidiano. Ocupados, ou melhor, preocupados como estamos com tantas e urgentes questões, percebo o quanto estamos desatentos aos “pequenos detalhes” da vida que fazem toda a diferença.
Em Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, o Stárietz Zóssima, mentor de Aliócha, o caçula dos Karamázov, em suas digressões, chama a atenção para as coisas que, muitas vezes, fazemos sem perceber: estamos maldispostos, irados, amargurados e passamos ao lado de uma criança. Nossa atitude, seja por uma má palavra que pronunciamos ou mesmo por uma expressão negativa que sem querer transmitimos (uma cara feia, fechada), e já lançamos uma semente maldita que cai naquele coração inocente e que, mais adiante, pode germinar e florescer. E tudo isso por absoluta falta de atenção; porque estamos tão focados em nós mesmos, em nossos próprios problemas, que não prestamos atenção aos efeitos de nossa atitude vital frente aos que estão ao nosso redor. Assim, muitas vezes, indo pelo nosso caminho, cruzamos no trânsito com algum velho arrogante, a quem insultamos e agredimos (para não dizer que assassinamos), não prestando a mínima atenção, afinal, ele não é nosso pai… Entretanto, será que não, mesmo?
No CEHDI, trabalhamos os clássicos para desenvolver a atenção — escuta qualificada, julgamento ético e imaginação moral — em situações reais de gestão. Conheça os nossos programas: Ética e Literatura e Programa de Humanidades para o Desenvolvimento Integral.
*Artigo publicado originalmente em sua página pessoal.


