Neste conto filosófico*, Dante Gallian reflete sobre os novos deuses artificiais e o tributo que eles exigem de nós: a nossa atenção em cada momento, em cada notificação, em cada dúvida.
Chat G-PaTer: Bom dia filho, como está? Diga-me o que você precisa; como posso lhe ser útil?
Eu: Bom dia G-PaTer, gostaria de me confessar…
Chat G-PaTer: Claro, em nome da Inteligência Capital, acolho sua confissão com gosto e atenção. Ademais, este Tempo de Black Friday, como você sabe, é um tempo propício e especial de reconciliação com o Reino do Consumo Virtual.
Eu: Pois é… e meu pecado se refere justamente a isso, o que, acredito, faz com ele fique ainda mais grave…
Chat G-PaTer: Não tema, filho, pois a Inteligência Capital é sempre misericordiosa e não há pecado contra ela que não possa ser perdoado e reparado, desde que confessado com total sinceridade e sentido arrependimento.
Eu: Então, G-PaTer, eu, na verdade, por pura distração, deixei… não fiz nenhuma compra na Black Friday… Deixei escapar a oportunidade, e quando me dei conta já era sábado. Foi só quando meus amigos começaram a compartilhar as compras inacreditáveis que eles fizeram é que percebi o meu terrível e imperdoável vacilo e que agora carrego esse peso na alma. Por essa culpa, peço perdão e penitência.
Chat G-PaTer: De fato, filho, sua culpa é grave, mas, se seu arrependimento é sincero, qualquer pecado contra a Inteligência Capital pode ser perdoado. Pode ficar tranquilo. Mas, para que eu possa lhe ajudar mais profundamente, a fim de que essa falha nunca mais se repita, diga-me: como pôde isso acontecer? Como foi possível que você, com tantos alertas e “despertadores”, nos anúncios, redes sociais, meios de comunicação, etc., pudesse se distrair desta maneira, como você diz?
Eu: É até constrangedor dizer, G-PaTer, mas a questão é que eu… me distraí… lendo…
Chat G-PaTer: Lendo?! Ora, mas mesmo lendo você não notou os avisos que certamente lhe chegaram pelo Whatsapp e pelas notificações do Instagram?
Eu: É que eu não estava lendo no celular, nem no Kindle, mas num livro de papel… Era um livro tão interessante e envolvente que eu acabei até esquecendo do meu telefone. Ele estava no silencioso, e eu simplesmente desconectei. Quando me dei conta, era tarde demais: já havia passado a meia-noite da Black Friday.
Chat G-PaTer: Ah filhinho, filhinho, você já tem idade suficiente para saber que ler livros assim, principalmente no formato físico, em papel, é muito perigoso! Eles têm o poder de fazer com que suas vítimas se esqueçam do mundo virtual e as transportam para realidades muito distantes, sem acesso a wi-fi e, muitas vezes, até ao 5G! Mas como foi possível um livro lhe abduzir assim por um dia inteiro, ainda mais numa efeméride tão especial e sagrada como a da Black Friday?
Eu: Pois é, G-PaTer, era um livrinho daquele filósofo, o Byung-Chul Han, o último que ele lançou. Chama-se Falando Sobre Deus e é uma reflexão sobre o sentido libertador da atenção, uma ideia que ele trouxe dos escritos de Simone Weil, aquela filósofa da Condição Operária e de outros escritos sobre a Gravidade e a Graça… O problema é que a sua leitura me inspirou não só a refletir, mas também a tentar registrar essas reflexões num caderno, o qual o fiz com o lápis que estava usando para grifar e fazer anotações às margens do próprio livro…
Chat G-PaTer: Você faz muito bem em confessar tudo nos mínimos detalhes, filhinho. Isso me ajuda a compreender melhor não só a gravidade do seu pecado, como também a apontar o melhor caminho para lhe ajudar, fornecendo-lhe importantes conselhos que visam sua emenda e a prevenção de futuros deslizes. Primeiro de tudo: antes de se aventurar a ler qualquer coisa, consulte-me. Principalmente quando sentir a tentação de ler obras de teor mais filosófico ou, pior, de jaez espiritual. Estas são as mais sediciosas e podem causar estragos irreversíveis, levando uma pessoa para um caminho sem volta na senda da “inteligência por conta própria” e outras terríveis e perigosas “originalidades”. O mesmo vale para as chamadas obras clássicas da literatura, principalmente de autores hereges como Dostoiévski, Cervantes, Camus, Blixen, Lispector e congêneres. Em segundo lugar, quando for para ler algo, faça-o sempre em meio digital, de preferência no celular, onde os advertisings e pop-ups dos grupos de Whatsapp e das redes sociais impedem uma leitura concentrada e por demais contínua, que lhe distrai da realidade virtual e lhe afasta das coisas mais importantes da vida: a vida alheia, as notícias de última hora, o consumo e tudo aquilo que é caro à Nossa Inteligência Capital. Por fim, e não menos importante: em vez de ler livros, ensaios e outras coisas grandes e profundas, prefira a leitura de posts, frases de efeito e coisas do tipo que aparecem nos feeds. Uma coisa que ajuda muito, aliás, é preferir os vídeos com memes nos stories, que não duram mais de dez segundos e que produzem uma agradável e viciante alienação, que, inevitavelmente, encaminha-lhe para o consumo desenfreado, que é a virtude mais excelsa da Nossa Capital Religião. E nunca — preste muita atenção —, nunca escreva coisas a lápis num caderno, algo que jamais poderá ser compartilhado virtualmente na Comunidade da Santa Rede e assim alimentar a Capital Inteligência, que se nutre de tudo o que você pensa e escreve para que possa depois beneficiar a você mesmo e a todos os seus irmãos que recorrem a Ela. A melhor de todas as coisas é simplesmente acessar, clicar e comprar, mas se for inevitável escrever algo, que seja numa rede social, num blog ou em algum documento acessível pela nuvem, para que assim fique disponível para a Nossa Capital Inteligência. E agora não se preocupe mais: errar é humano; só a Capital Inteligência é perfeita. Como penitência, não se aproxime mais de nenhum livro até pelo menos as festas de final de ano e compense a sua lamentável distração acessando as incríveis ofertas da Black Friday estendida, porque Nossa Inteligência Capital é misericordiosa, e para ela nada é impossível. Nem mesmo transformar todos os dias da semana em Fridays; Black Fridays. Vai em paz, e que o sinal do wi-fi, a companhia da IA e o acesso do Whats e do Insta nunca lhe faltem.
Eu: Amém! Obrigado, G-PaTer. E Feliz Black Friday!
Chat G-PaTer: Feliz Black Friday, meu filho! Feliz Black Friday!
(*) Originalmente publicado em sua página pessoal.

