No dia 15 de agosto de 2025, tivemos nossa Season Lecture com o professor convidado do CEHDI Rafael Ruiz. O tema – Cansaço moral ou cansaço existencial – partiu de uma discussão levantada por um artigo recente de Vicky Block no jornal Valor Econômico. Em seu texto, ela tratou da sensação de cansaço dos líderes que tentam manter coerência ética mesmo sob a pressão de entregar sempre mais.
Ao abordar a questão, o professor decidiu dar um passo atrás e fazer outra pergunta: o que se esgotou antes da ética? Porque o cansaço moral não é a doença, mas um sintoma.
Quando o trabalho deixa de responder ao “para quê?”, a pessoa executa, cumpre e entrega, mas não reconhece um fim que valha o esforço. Sem finalidade, sem sentido – o télos de que falam os filósofos gregos clássicos – até fazer o certo começa a pesar. E nesse terreno nasce o cansaço e a sensação de “viver duas vidas”: uma, interior, regida pelos nossos valores, e outra, exterior, que trata de se ajustar às metas. Como o professor recordou na palestra, a questão já estava em Shakespeare: To be or not to be. Em outras palavras, podemos nos perguntar “Quem eu quero ser?”.
A cultura da performance e a perda de sentido
Ao longo da palestra, surgiram algumas das engrenagens que alimentam a falta de sentido: a necessidade de entregar sempre, a qualquer custo, acaba fazendo que a ética vire uma tarefa a ser cumprida. Não à toa, hoje as palavras “ética” e “moral” foram substituídas pela rígida compliance. As normas de compliance não vêm do ser; elas não devem ser seguidas para nos fazer melhores e ninguém acha que melhorou como pessoa ao cumpri-las. Elas são itens em um checklist corporativo que as pessoas devem tomar cuidado para seguir à risca, mesmo que não vejam sentido nelas.
Usando uma metáfora tirada do Senhor dos Anéis, a pessoa que vive apenas para fazer é semelhante aos “espectros do Anel”, os Nazgûl: figuras que “parecem”, mas não “são”; que não tem vontade própria e só se movem pela vontade alheia. E fazem isso com tanta intensidade e por tantos anos que acabam se esvaziando por dentro.
Quando os profissionais dominam a linguagem do valor, mas não encontram sentido no que fazem, vem o desgaste. Ao final da palestra, alguém perguntou como evitar o cinismo. A resposta: começar pelo critério pessoal. Em certos contextos, é possível resistir e abrir espaço para decisões melhores; em outros, a integridade pede mudar de ambiente. A medida não é a oportunidade do momento, e sim a resposta à pergunta “quem eu sou aqui?”.
Ética que nasce de dentro
O eixo seguinte foi a coerência. Ruiz retomou o triângulo clássico: logos (critério e verdade), pathos (sentido e compromisso) e ethos (caráter). Sem ethos, a organização pode ter bons argumentos e emoção, mas vira teatro: discurso que não sustenta o custo das decisões. A unidade de vida é o teste: ser a mesma pessoa na agenda, no orçamento e na conversa de corredor.
Quando um dos assistentes quis saber como difundir uma cultura de verdadeira ética sem “policiar costumes”. Ruiz relembrou que é preciso confiar nas pessoas, ou seja, acreditar que as pessoas podem ser livremente boas. Isso implica um risco, claro, de desiludir-se e de não ter algo sob controle (um dos grandes medos corporativos de hoje).
Fazer o melhor e realizar a própria beleza
Outra maneira de difundir o bem nas empresas é o exemplo e a proximidade. Evocando a tradição clássica, o professor Rafael Ruiz evocou a kalokagathia, a realização da própria bondade e da própria beleza. Em linguagem de gestão, significa dar o melhor de si com excelência e sentido. “Realizar a própria beleza” não é ornamento; é ligar competência técnica, serviço e honra. Dostoiévski ecoa: “a beleza salvará o mundo”, ou seja, a beleza de atos justos e relações tratadas com dignidade.
Nesse momento, um dos participantes levantou uma dúvida comum: coerência custa desempenho? É um dilema falso. Não se opõe padrão a resultado; recoloca-se o resultado no lugar certo. Onde o sentido é claro, a autonomia deixa de ser palavra de apresentação e vira espaço real para responsabilidade. E responsabilização, nesse contexto, não é punição: é a contrapartida da confiança.
Confiar, ser livre e correr riscos
O fecho conceitual da conferência reuniu três palavras: liberdade, confiança e assumir risco. São três características profundamente humanas. Confiar é apostar primeiro, por decisão; ser livre é escolher responder pelo que se faz; correr riscos é admitir que nenhum processo elimina a coragem de decidir. “Viver é perigoso”, dizia Guimarães Rosa, como o professor nos lembrou. No trabalho, a liderança é incapaz de eliminar as incertezas. Mas pode oferecer condições para que todos saibam enfrentá-las com prudência e responsabilidade.
Só humanos podem fazer isso. Por isso, quando alguém perguntou sobre IA, a resposta foi direta: quando reduzimos o trabalho a entregas repetíveis e mensuráveis, as máquinas levarão vantagem sempre. O que permanece humano e insubstituível é julgar, aprender, assumir responsabilidade e fazer o bem quando ninguém está olhando.
O cansaço moral não é destino. Ele recua quando o sentido volta ao centro e a duplicidade perde espaço.
Quer aprofundar? O CEHDI conduz leituras guiadas de clássicos que iluminam dilemas atuais. Um próximo passo é o programa Grandes Obras, com Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski: cehdi.org.br/karamazov.


