Não sei se é apenas impressão minha -– alguém que só visita as redes sociais para responder mensagens e comentários relativos aos meus projetos de Laboratório de Leitura e lê umas poucas notícias por dia –, mas, parece, a leitura de livros de literatura passou a ser a moda. Já são milhares os perfis de book influencers, com milhões de seguidores, e de book clubs que proliferam do dia para a noite. Fala-se, até, de uma ressurreição das livrarias físicas em várias partes do mundo. Em tempos de inteligência artificial e hegemonia do smartphone, tal fenômeno não deixa de ser surpreendente e, claro, alentador.
A invasão avassaladora dos gadgets, internet e mídias sociais, com o predomínio da rapidez, quantidade e superficialidade, tem demonstrado um grande potencial tóxico, gerando desequilíbrios psicológicos, emocionais e sociais.
Frente a isso, o resgate das experiências e hábitos analógicos, físicos, que retomem a dimensão do denso, do profundo e do qualitativo aparece como uma reação quase instintiva, como forma de defesa daquilo que é próprio do humano. O retorno aos livros, portanto, emerge como um aspecto muito importante nesse movimento de reação e resistência.
Alguém como eu, que há mais de vinte anos se dedica à valorização da leitura – especialmente dos clássicos da literatura universal – como forma de humanização e promoção da saúde existencial, não poderia estar mais contente com essa moda do literary book revival. Entretanto, como qualquer moda, ela apresenta algumas características problemáticas que merecem atenção especial.
Na verdade, são muitos os pontos a serem levados em conta. Porém, para efeitos de um primeiro artigo sobre o assunto, gostaria de destacar apenas um, que, logo de cara, salta aos olhos: o caráter “produtivista” ou “performático” dessa nova onda.
Na maioria das reportagens e postagens que li e às quais assisti, percebi que a abordagem predominante é a de apresentar listas de livros lidos e de livros a serem lidos. Destaco aqui, sobretudo, as intermináveis listas dos dez, cem ou mil livros mais importantes da história da humanidade que precisam ser lidos antes do apocalipse ou da morte do leitor.
Num mundo onde há obsessão por listas, metas e goals, tal abordagem suscita verdadeira disputa por quem lê mais em menos tempo. E assim, no perfil dos literary influencers, o que mais encontramos são pilhas de livros e checklists orgulhosamente apresentadas, sendo que, na maioria das vezes, os comentários sobre os livros são: “gostei muito”, “este aqui é muito difícil”, “este aqui é uma delícia”, “este outro é muito chato”, etc.
Além disso, é comum encontrar dicas do tipo “quantas páginas deve-se ler por dia para que até o final do ano se possa dar cabo de tantos livros”. Observa-se, assim, que nesta nova onda de resgate da literatura predomina a mesma lógica que vem se aplicando aos exercícios físicos ou ao desempenho profissional: aquela que chamo de performática.
Largar o celular por algumas horas, restringindo o hábito alienante e hipnótico de rolar o feed ou o carrossel de stories das redes sociais, para dedicar-se à leitura de um clássico da literatura é, sem dúvida, algo muito bom e saudável.
Porém, ler, no sentido mais profundo do termo, é muito mais do que vencer páginas e chegar o quanto antes ao final do livro para dar check. Ler, no sentido do existencial, é penetrar no mundo que se abre em cada página que se nos apresenta; é mergulhar em cada frase e às vezes em cada palavra, sem pressa, sem se preocupar com o que vai estar na frase ou na página seguinte.
A nova moda literária é, sem dúvida, algo a ser celebrado e incentivado. No entanto, para que esta moda possa realmente nos libertar da alienação desumanizante, promover uma verdadeira transformação humanizadora e fomentar nossa saúde existencial, ela deve ir além do âmbito performático. Provavelmente, quando morrermos não seremos questionados sobre quantos livros lemos, mas sim sobre como os lemos e o que aprendemos com eles. Se a leitura nos serviu para sermos pessoas melhores conosco mesmos e com os outros.
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