Inspirado no conto “Amor” de Clarice Lispector
Todos os dias, pela manhã, calçamos nossos sapatos já laceados e partimos para o dia que se inicia. Caminhamos até o trabalho tropeçando nas manchetes de jornal que estão expostas nos letreiros do metrô, ouvimos na rádio a opinião importantíssima de tal especialista sobre a crise mundial… entorpecidos pelas “receitas de bolo” que nos ensinam, diariamente, a como educar nossos filhos, ou os dez passos a serem dados para se ser feliz. Acabamos por silenciar a voz de nossa própria consciência, a aliená-la, e a entregar a um mundo de regras e códigos – que garantem o sucesso se seguidos corretamente – a mais importante característica da inteligência humana.
Esse mesmo mal acometeu Ana em mais uma das muitas tardes empoeiradas de sua vida, aquelas tardes em que ela quase se questionava sobre suas escolhas, mas que logo minguava, encontrando distração em uma caminhada até o mercado. Em sua vida “não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido”.
A tentação a aceitar um mundo “pronto”, onde o certo e o errado nos são transmitidos nos livros de autoajuda, nos sermões da família ou nas aulas de contabilidade da universidade é algo difícil de resistir. Isso não se dá por uma falta de vontade ou capacidade de construir uma visão crítica do mundo, embebida em nossas experiências e valores, mas sim porque a responsabilidade em tomar decisões e manifestar opiniões de peito aberto, que virão a influenciar na vida de tantos outros além de nós é, sem dúvidas, um ato de coragem dolorido.
Um dia, ao tomar o bonde para fazer as compras para o jantar, Ana se deparou com um homem cego que mascava chiclete, aguardando o transporte no ponto em que o bonde se aproximava. Seu semblante, que se movia com o mastigar ininterrupto, causou nela um incomodo sem tamanho, muito parecido a aqueles que se sucedem quando constatamos que de nada adianta manter uma imagem, um personagem, diante de um cego. “Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê”. Ana foi arrancada de sua alienação pelo olhar vazio do cego, que a lembrou das coisas que não podem ser encenadas e, principalmente, do valor das escolhas e julgamentos que apenas nós, munidos de nossa consciência, podemos exercer.
Como muito bem aponta Hanna Arendt em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, é a alienação de nossa consciência que nos coloca em um estado de profunda inércia moral, levando-nos a executar passos importantes de nossa vida – de forma particular e social – sem o envolvimento e a responsabilidade necessários. Uma vez que se estabelece que nosso interior está separado de nosso exterior, como se fosse possível separar um ser humano em dois, então não há problemas em acatar ordens e apertar um simples botão, mesmo que esse ato mate muitas pessoas em uma câmara de gás.
Se nossas ações e julgamentos não dependem de nosso conteúdo moral, de nossa consciência e de nossos princípios, nos vemos tomando uma decisão injusta, prejudicial a muitas pessoas, porque nossas apostilas da faculdade terão mais validade do que nossa consistência humana.
Da mesma forma, Ana vivia aparte de sua própria vida, e o encontro com o misterioso homem cego a levou a um despertar, uma epifania, onde passou a tomar consciência do prazer e da dor em se ver o mundo por si mesma. “Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo”. Via agora o peso de suas decisões, e “Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga.”
Muito embora haja temor no tomar consciência, só através dele se é possível ver o mundo de forma real, para o bem e para o mal e, por sua vez, é através do entendimento da realidade que podemos tomar boas e prudentes decisões. A alienação da consciência nos torna insensíveis não só à maldade que cerca o mundo, mas também sua bondade e sua beleza. Por isso, somente após seu despertar, Ana viu o tamanho do amor que sentia pelos filhos, a grandeza de sua sala de estar, a inquietação de se estar viva…tudo aquilo que passava totalmente despercebido aos seus olhos todos os dias. Ana vê, enfim, o real valor das nuances da sua vida e, assim, é capaz de perceber com mais facilidade o que é importante e deve ser preservado.
Para que nós e nossos empreendimentos avancem, e finalmente a caminhada matinal ao trabalho não seja apenas mais um dia, mas sim, o dia, aquele em que faremos coisas realmente importantes, é fundamental que tomemos consciência do mundo ao nosso redor e, principalmente, de nós mesmo, não relegando a justificativas teóricas as nossas decisões.
Para que se seja prudente é necessário enxergar além. Enxergar com os olhos de um cego.
Artigo elaborado sob a orientação do Núcleo Humanismo e Empresa.
Originalmente publicado em: https://ise.org.br/nuhem-artigos/cegueira-alienacao-2/


